8.10.09

Continuidade dos Parques

Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranqüilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse , de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, a sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do mato. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos, o punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.

Já sem olhar, ligados firmemente á tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que o levaria à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O capataz não estaria àquela hora, e não estava. Pelo sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

CORTAZAR, Julio. Final do jogo.
Trad. Remy Gorja Filho.
Rio de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1971.

--------

(Não, eu ainda não consegui superar...)

3 comentários:

Fernando disse...

O que você não conseguiu superar? A trama maravilhosa que o Cortázar consegue pôr em cada uma de suas estórias (e, especialmente, o encanto desta)?

Marian, se eu te contar que meu irmão tornou-se um fascinado por Cortázar e leu em pouco tempo os dois volumes dos "Cuentos Completos" desse grande e doido escritor!! Está lá na biblioteca da FFLCH, uma vasta gama de livros dele, inclusive estes que meu irmão leu, eu até sei o lugar direitinho. Adjunto à seção onde se encontram os livros do Borges. Suba a escada central da biblioteca, vá à última estante antes da porta dupla de vidro (à direita), no fim dela estão inúmeras obras de escritores hispano-americanos

Te recomendo um conto dele que me tocou profundamente: "Señorita Cora". Há outro, mais tremendo ainda, mas cujo título não me recordo.

Valeu por postá-lo! Adorei entender o conto. Na época não o havia compreendido. Abraço!

Marian disse...

é, tô ligada na biblioteca.
é que a gente trabalhou esse texto no final da aula de IEL desse dia e foi MARA. Eu não consegui parar de pensar nele o dia inteiro. Aliás, eu ainda me pego uma ou outra vez tentando lembrar tudo exatamente como tá escrito...

Camila da Mata disse...

Tem vezes que Cortázar é tão genial que dá até ódio. (e a gente teve esse conto no projeto também.)

:D