10.10.08

Cotidiano

“(...)
E quando se cumprir aquele
Instante, que tardando vai,
De eu deixar esta vida, quero

Morrer agarrado com ele.
Talvez me salve. Como – espero –
Minha mãe, minha irmã, meu pai.”
(O Crucifixo, Manuel Bandeira)

Os dedos de Glória correram-lhe pelo colo pálido e agarraram-se ao crucifixo de marfim já amarelado pelo tempo. Única lembrança da mãe. As lágrimas molhavam-lhe a face e os cabelos. O longo casaco encobria o corpo miúdo.

A rua, mais escura ao adentrar a noite, um frio cortante. Bêbados jogados às sarjetas, abandonados pela vida. A verdadeira Roda dos Enjeitados, sem que houvesse viva alma além do muro. Junto ao poste de iluminação, a garota espera. Todos os dias, há cinco anos.

Sorria um sorriso falso de felicidade forçada aos olhares de desprezo e comiseração. Cuspiam-lhe na cara. Puxava o amuleto que pendia ao colo. Beijava-o. As lágrimas voltavam a escorrer-lhe pela face, chegando-lhe aos lábios. Embriagava-se de seu próprio tormento.

Àquela manhã voltou para casa, roupas rasgadas, vergões fundos impressos na fina pele alva.

"O dinheiro."

Os olhos permaneceram fixos no chão. O pai foi tomado pela fúria.

O corpo de Glória jazia, ainda quente, nu, sobre a cama. Na face, marcas negras. Na cabeça, o sangue escorrendo, a marca da estaca de ferro. O cordão marcava-lhe o pescoço, o crucifixo caía ao lado da cama. Um cheiro nauseabundo invadira o quarto. O pai desfez-se das roupas ensangüentadas. Foi ao trabalho.

O jornal daquela tarde trazia a manchete estampada na primeira página: "Prostituta é morta pelo pai". Ou talvez tenha sido uma minúscula nota ao canto da terceira ou quarta página. Ninguém se lembra ao certo.

(isso-aqui-tá-uma-merda-mesmo)

Um comentário:

Fernando disse...

Modéstia de escritor... =P